A execução civil no contexto da Covid-19
Ana Carolina F. de Melo Brito
Gilberto Canhadas Filho

Estamos todos experimentando uma nova realidade, declarada pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em março de 2020. Sob o aspecto jurídico, as modificações impostas ao nosso modo de ser e fazer negócios tem gerado uma profusão de atos normativos e sido alvo de discussões jurídicas sobre os seus efeitos.

Diante da magnitude da crise que se vislumbra por força da Covid-19, há certo consenso entre os juristas de que o mindset centrado em uma perspectiva puramente individualista não trará uma resposta satisfatória para solver a nova problemática, que tem traço estrutural. Por outro lado, generalizações podem acarretar distorções. Na busca pelo justo, deve-se buscar distinguir situações sob análise, já que o impacto da crise não afeta a sociedade de maneira homogênea. Para tanto, é preciso instrumentalizar o cabedal jurídico que temos à disposição, dando-lhes, na medida do necessário, novos contornos e sentidos. Abordamos neste artigo os efeitos da Covid-19 sobre a execução civil, que envolvem as questões ligadas ao pagamento de dívidas reconhecidas em definitivo pelo Poder Judiciário, aos efeitos da suspensão processual dos prazos e às consequências do inadimplemento.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Resolução 313, de 19 de março de 2020, determinou a suspensão dos prazos processuais até o dia 30 de abril de 2020. Na esteira dessa Resolução, os tribunais do país seguiram suas atividades, mas os atos processuais ficam com os prazos suspensos.

O prazo de 15 dias para pagamento de quantia certa prevista em sentença judicial[1], nos termos dos artigos 219 e 523 do Código de Processo Civil (CPC), é considerado prazo processual[2], para o qual é feita a contagem em dias úteis[3]-[4] e são aplicadas as causas gerais de suspensão do processo.

É preciso esclarecer que o reconhecimento da pandemia não implica automática suspensão das obrigações financeiras, nem suspensão do processo. Após o decurso da suspensão determinada pelo CNJ, havendo impossibilidade de pagamento decorrente a decretação de emergência ou calamidade pública, cabe ao devedor provar o justo impedimento e requerer individualmente, em cada processo, a prorrogação do prazo, nos termos do artigo 222, §2º, do CPC[5], apresentando os demais fundamentos de fato e de Direito que justificam o pedido.

Não obstante as diversas medidas econômicas que estão sendo adotadas pelo Poder Público, tais como suspensão de protestos e cobranças de débitos inscritos na dívida ativa, a disponibilização de crédito para as pequenas e médias empresas, a isenção ou o adiamento na cobrança de certos tributos, pode-se imaginar que, em muitas situações, o impacto da pandemia poderá colocar em xeque o cumprimento de obrigações financeiras, sem culpa das Partes.

Para as relações contratuais privadas, a teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva[6], tem sido bastante debatida e já está sendo utilizada como fundamento em processos judiciais que tem como pano de fundo a pandemia da Covid-19.

Com objetivo similar de preservação do equilíbrio contratual, sendo que aplicável nas relações estabelecidas com a Administração Pública, a Teoria do Fato do Príncipe dá lastro para a liberação de obrigações que se tornaram impossíveis de serem cumpridas em razão da imposição do Estado sobre o particular.

No atual contexto, tais teorias tem socorrido os devedores diligentes e de boa-fé, que buscam a possibilidade de suspensão de pagamentos ou até mesmo a resolução contratual sem imputação de culpa às partes, como nos casos de encerramento forçado da atividade empresarial, por exemplo.

O que se tem destacado, todavia, é que tais teorias tem extrapolado o âmbito de aplicação para os quais foram originariamente concebidas, dando ensejo à sua aplicação fora mesmo das relações contratuais. Nesse sentido, merece destaque recente decisão[7] da Justiça Federal do Distrito Federal, que aplicou a Teoria do Fato do Príncipe para afastar por 5 (cinco) meses obrigações tributárias, tais como o recolhimento de Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ), Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), Pis e Cofins. Portanto, temos que a situação atípica da pandemia está permitindo a instrumentalização de institutos jurídicos que possibilitam a suspensão, reequilíbrio ou até mesmo a resolução contratual, seja nas relações privadas, seja nas obrigações com o Fisco.

Considerando a aplicação das teorias da imprevisão e do fato do príncipe para flexibilizar obrigações contratuais e até tributárias em momentos de atipicidade, que impossibilitam o cumprimento, cabe a analogia para apontarmos a Covid-19 como um "justo impedimento", "imprevisível" ou "inevitável", ao cumprimento das obrigações estabelecidas em sentenças.

Nessa esteira, as obrigações previstas em sentença também poderiam, a depender do caso concreto, ter o seu prazo estendido, ou seu cumprimento modulado. Obviamente que as obrigações oriundas do título judicial não se sujeitam à resolução da obrigação por força da pandemia, mas a imprevisão oriunda dessa situação excepcional justificaria a dilação de prazo ou parcelamento do débito. Se, de um lado, a coisa julgada somente pode ser modificada por ação rescisória[8], à parte que não tem interesse em modificar o julgado, mas apenas rever a forma de cumprimento da obrigação, pode pleitear a modificação do cumprimento da sentença.

Sendo ordinariamente de 15 dias o prazo para pagamento de quantia certa estabelecida em título judicial, sob pena de acréscimo da multa de 10% sobre o valor devido[9], entendemos que seria possível a aplicação do parcelamento previsto no art. 916 do CPC. A princípio destinado ao títulos extrajudiciais, tal dispositivo legal possibilita a entrada de 30% do valor do débito, acrescido de custas e honorários advocatícios, deixando a quitação do saldo restante em até 6 (seis) parcelas mensais corrigidas e com juros legais.

Alternativamente, ainda é possível cogitar a realização de negócio jurídico processual[10] atípico para o estabelecimento de novas condições de cumprimento da sentença, ou até mesmo na execução do título executivo extrajudicial. Com esse lastro, por exemplo, é possível estabelecer novo calendário processual, convencionar a impenhorabilidade de certos bens ou renunciar a juros moratórios, desde que satisfeitas as demais condições legais para sua realização (convenção por escrito, objeto lícito, agente capaz, direitos disponíveis).

Por fim, merecem registro as soluções extrajudiciais e métodos alternativos de resolução de conflitos, que em um momento como o presente mostram-se altamente recomendáveis.

Não é demais mencionar que o presente artigo apenas debate a possibilidade da aplicação, por analogia, das Teorias da Imprevisão e do Fato do Príncipe na execução civil (cumprimento de sentença e execução de títulos extrajudiciais). A falta de pagamento de tais obrigações, sem prévia decisão judicial que autorize alguma flexibilização nas condições pré-estabelecidas em lei, poderá levar a atos de constrição patrimonial, como penhoras, e até mesmo pedido de falência por parte dos credores, nos termos do art. 94, II, da Lei de Recuperação Judicial e Falência.

Por isso, nesse momento de incerteza, é preciso ter cautela, analisar caso a caso, sendo recomendável o diálogo franco entre as partes, para possibilitar que o cumprimento de obrigações seja ajustado dentro da atual realidade de cada um, de modo que a cooperação, a solidariedade e o bom senso solucionem conflitos e possibilitem relacionamentos comerciais duradouros.

 

São Paulo, abril de 2020.

 

Ana Carolina F. de Melo Brito e Gilberto Canhadas Filho, sócios de Trigueiro Fontes Advogados em São Paulo.

 

[1] FONAJE. ENUNCIADO 97 – A multa prevista no art. 523, § 1º, do CPC/2015 aplica-se aos Juizados Especiais Cíveis, ainda que o valor desta, somado ao da execução, ultrapasse o limite de alçada; a segunda parte do referido dispositivo não é aplicável, sendo, portanto, indevidos honorários advocatícios de dez por cento.

[2] STJ, RESp 1.708.348/RJ, 3ª T., publicado em 01.08.2019

[3] STJ, REsp 1.693.784/DF, 4ªT., publicado em 05.02.2018

[4] I Jornada de Processo Civil. Enunciado 89: Conta-se em dias úteis o prazo do caput do art. 523 do CPC.

[5] Art. 222. Na comarca, seção ou subseção judiciária onde for difícil o transporte, o juiz poderá prorrogar os prazos por até 2 (dois) meses.

  • 1º Ao juiz é vedado reduzir prazos peremptórios sem anuência das partes.
  • 2º Havendo calamidade pública, o limite previsto no caput para prorrogação de prazos poderá ser excedido.

[6] Artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil e também artigo 6º, inciso V do Código de Defesa do Consumidor

[7] Processo nº 1016660-71.2020.4.01.3400 – 21ª Vara Federal Cível da SJDF – Seção Judiciária do Distrito Federal.

[8] CPC, art. 966.

[9] CPC, art. 523, §1º.

[10] CPC, art. 190.


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